“Os testamentos” – sem spoilers

“Os testamentos” – sem spoilers
Tempo médio de leitura: 4 minutos

Quase 35 anos depois e… voltamos ao universo de Gilead, ambiente claustrofóbico criado por Margaret Atwood em 1985. A continuação, ansiosamente esperada, relaciona-se profundamente com sua época de produção, tal qual a primeira obra.

Em primeiro lugar, em “The testaments” os pontos de vistas são expandidos. Enquanto em “The Handmaid’s tale” tínhamos acesso às percepções de Offred, na continuação esse aspecto é bastante alterado. Em lugar de UM relato autobiográfico, TRÊS. Em segundo lugar, essa nova estrutura, com diversidade de pontos de vista, dá um novo ritmo à obra. Ao invés da rotina e do tédio de Offred, temos na continuação uma narrativa mais próxima de um thriller gileadiano. Como consequência, é impossível parar de ler, especialmente a partir da segunda metade do livro, quando as três histórias se entrecruzam. 

Nessa resenha, tentaremos falar um pouco sobre as primeiras impressões que tivemos, evitando ao máximo dar spoilers da história. Mas, quem tiver interesse numa resenha COM spoilers, é só clicar aqui.

Atualidade como inspiração

O conto da aia é considerado um clássico distópico, escrito por Margaret Atwood, em 1985. Nesse livro, temos acesso ao ponto de vista da aia Offred (Of Fred), tomada como escrava pelo sistema teocrático de Gilead. Os chamados “filhos de Jacob” tomaram o poder e os Estados Unidos já não existem mais. A obra termina de forma incerta quanto ao destino da personagem central.

Logo em seguida, somos apresentados às notas históricas.  Há um evento historiográfico mais de 100 anos depois, cujo intuito é investigar a sociedade gileadiana. A partir desse evento percebemos a longa duração dos preconceitos aceitos e difundidos naquela sociedade. Os palestrantes fazem piadas com a capacidade cognitiva feminina e questionam a validade do relato de Offred. Além disso, focam toda a energia da pesquisa em encontrar os personagens masculinos do manuscrito.

Dos anos 80 para cá, não podemos negar que muita coisa mudou no cenário político mundial: o Muro de Berlim caiu, a URSS deixou de existir, as mulheres adquiriram cada vez mais voz e direitos. Por outro lado, nos últimos 5 anos presenciamos uma ascensão do fanatismo religioso, uma volta de manifestações racistas de todos os tipos e uma guerra declarada aos direitos Lgbts e femininos. 

Além disso, no que diz respeito à obra literária da Atwood, devido à sua atualidade, tornou-se série de TV pelo canal de streaming Hulu e ganhou fãs no mundo todo. De acordo com a própria Atwood, ela voltou a escrever sobre o universo de Gilead antes mesmo que a série fosse lançada, devido ao contexto norte-americano. Desse modo, o objetivo de  The testaments ou Os testamentos seria responder às questões que lhe foram feitas nos últimos 30 anos. Para essa resenha, utilizamos a versão em Língua Inglesa, lançada em Setembro de 2019, mas a tradução já está disponível a partir do começo de Novembro. 

The testaments

Na continuação de “The handmaid’s tale”, temos acesso a três pontos de vista. São eles: o da temida tia Lydia; o da adolescente Agnes, criada dentro de Gilead; e o de Daisy, uma garota Canadense, que cresceu cercada de referências à Gilead, sem entender muito bem como o sistema se sustentava. Há muito sofrimento e claustrofobia. Se não houvesse, não seria Gilead, nem a escrita da Atwood. Mas, fundamentalmente, há esperança. 

É claro que, como admite a própria autora (na sessão de agradecimentos) se esse segundo livro tivesse sido escrito em qualquer outro momento dos últimos 34 anos, ele seria bem diferente da versão atual. Afinal de contas, uma das características das distopias é a relação com o presente, mais do que com o futuro ou o passado. Ademais, outra característica sempre presente no gênero é a dicotomia entre o bem e o mal. No caso de “O conto da aia”: as mulheres abusadas, sem voz, sem poder, subservientes; e os homens fazendo o que lhe interessam, em razão do seu poder (quase) ilimitado, adquirido socialmente.

No entanto, nessa continuação, se as mulheres não têm voz socialmente reconhecida, elas têm acesso aos segredos e à podridão do sistema. Tudo isso são armas que podem levar qualquer sociedade pretensamente totalitária à implosão, especialmente se somado às pressões externas. 

Talvez, o aspecto mais importante: algumas mulheres, em certas posições dentro da sociedade gileadiana, têm acesso à leitura. Evidentemente, a leitura, seja ela de livros clássicos, da Bíblia, de discursos ou da árvore genealógica pode ser revolucionária e grande reveladora de novas perspectivas para garotinhas iludidas. 

A fábula da raposa e do gato

Personagem odiada pelos fãs, tia Lydia relembra a fábula da raposa e do gato (clássico contado pelos Irmãos Grimm) e relata sua eterna dúvida: seria ela a raposa, que afobada por todas as possibilidades que detém acaba presa pelos caçadores? ou seria o gato, sem grandes planos, mas que do alto da árvore não pode ser visto, muito menos apanhado? A resposta só a leitura da obra dirá. No entanto, a produção da série foi aconselhada a não dar um fim à personagem. O motivo seria a importância dela para a história de Gilead.

No mais, a continuação encerra com mais um “Notas históricas”. Nele, os historiadores tentam, mais uma vez, juntar as peças do quebra-cabeça gileadiano e levantar hipóteses sobre os futuros das 4 protagonistas da distopia. Assim como as narrativas autobiográficas, os historiadores também relacionam-se mais com a história produzida nos dias atuais. Isso significa que há um maior respeito pelas vítimas do sistema, um reconhecimento de sua importância e um anseio em destacar seus nomes, suas histórias. Curiosos?

Comentem aqui as suas expectativas sobre essa continuação,

Aline Machado

Mineira, gateira, swiftie e mestra em literatura

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *