A Vida Invisível

A Vida Invisível
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“A Vida Invisível”, filme de 2019, é uma adaptação do romance de Martha Batalha, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”. Dirigido por Karim Aïnouz, com Carol Duarte e Julia Stockler como as irmãs Gusmão, o filme conta ainda com presenças de Gregório Duvivier e a sempre magnífica Fernanda Montenegro.

A partir de agora, haverá spoilers..

“A vida Invisível” é, indubitavelmente, um filme feminista. Sororidade é uma das palavras mais associadas ao feminismo e sororidade é, exatamente, do que o filme trata. O que protege, o que até mesmo salva as mulheres nessa sociedade extremamente opressora do Rio de Janeiro dos anos 50 é a união entre elas. Seus sonhos são menosprezados, seu valor está atrelado à sua castidade, sua função é casar e ter filhos. As irmãs Gusmão tentam fugir disso, mas são esmagadas. Ainda assim, cada uma a seu modo encontra forças para, pelo menos, sobreviver.

A primeira cena do filme já nos avisa exatamente o que vai acontecer: as irmãs estão em uma praia quando a chuva se anuncia. Elas decidem ir embora, mas enquanto uma deixa rapidamente o local, a outra fica para trás, desorientada. Estas imagens, associadas ao que ouvimos em off, fará todo sentido mais tarde. É um foreshadowing: já no início do filme vemos que elas se perderão uma da outra, para nunca mais achar… Mas elas se perdem, em certa medida, também de si mesmas: cheias de planos e sonhos elas veem suas vidas saindo completamente de seu controle.

Seduzida pelo marinheiro grego Yorgus, Guida sai para encontrá-lo e acaba embarcando com ele para a Grécia. Eurídice espera pela irmã, mas o que resta dela é um dos brincos que usava, caído no chão. A partir de então, como um elo que as une, cada uma usa um dos brincos, sem saber que a outra faz o mesmo.

Guida retorna, após um tempo, decepcionada e grávida. Ao vê-la nessa situação, seu pai a expulsa de casa. A mãe não tem voz. Obedece ao marido e observa, agoniada, a partida da filha que carregava seu neto no ventre. Mas a maior crueldade feita por este pai é a de separar as irmãs: diz à Guida que Eurídice está em Viena e proíbe a mulher de contar para a outra filha que sua irmã retornou procurando por ela. Eurídice estava ali mesmo, no Rio de Janeiro, casada, mas ainda sonhando com a ida para o conservatório de Viena, onde sempre quis estudar piano. E desesperada por notícias de Guida.

Começam então os suplícios das duas irmãs: Guida escreve inúmeras cartas para Eurídice, na esperança de que os pais enviassem a ela, em Viena. Eurídice, por sua vez, contrata um detetive para tentar descobrir o paradeiro da irmã. Enquanto se procuram, elas passam por situações difíceis e dolorosas, o que só faz aumentar a falta que uma sente da outra.

A mãe adoece e uma cena nos leva a crer que ela teve câncer de mama. Vemos a mãe mutilada, sem um de seus seios. Vejo nessa perda um significado: outrora descrita por uma das filhas como sendo “a sombra do pai”, esta mulher não tem voz. Ela obedece cegamente às ordens do marido. Perde o contato com uma das filhas. Perder um pedaço de si parece ser a somatização do que ela vivia: perder uma das filhas, desta maneira. Perder a chance de conhecer o neto. E tudo, sempre, sem reclamar. Além disso, os seios são uma marca, um símbolo do feminino. E o feminino neste casamento é extremamente massacrado.

Guida tem o filho e o abandona no hospital, mas conhece uma mulher que a encoraja a buscar e criar a criança. Esta mulher, Filomena, se tornará outra irmã de Guida. A irmã que Eurídice não teve a chance de ser. As duas desenvolvem uma bela amizade e se tornam a família uma da outra.

Eurídice engravida, contra sua vontade, mas ainda estuda para a prova do conservatório. Fica, porém, cada vez mais claro que ela não poderá ir. Ela está casada, torna-se mãe, dona de casa. Viena é um sonho impossível para ela, ainda que ela demore a aceitar (e compreender) isto. Mas ela também encontra em uma amiga uma espécie de irmã substituta. Tem nessa amizade alguém com quem pode conversar e em quem confiar.

Várias coisas acontecem, inclusive um quase encontro das irmãs, em um restaurante. Mas os anos passam, e agora Eurídice já é uma senhora idosa. Após a morte do marido, enquanto arruma os pertences do falecido, um bolo de cartas é encontrado. São as cartas de Guida. O pai de Eurídice, em algum momento, passou para o marido da filha o poder sobre o destino da mesma. Em uma atitude coerente com esse sistema extremamente patriarcal, o pai deixa a filha sob os cuidados do marido. Inclusive a decisão de mostrar ou não para ela as cartas. Obviamente, o marido repetiu o gesto do sogro: deixou Eurídice em sua ignorância, sem saber que a irmã também a procurava.

Eurídice vai ao endereço dos envelopes e conhece sua sobrinha neta. Mas Guida já havia morrido. As duas irmãs foram separadas e se procuraram por anos e anos, sem conseguir se encontrar. A sociedade na qual viviam punia as mulheres como Guida, que se entregaram a um homem fora do casamento. Punia mulheres como Eurídice, que ousavam sonhar com algo que não fosse se casar, ter filhos, cuidar de casa. Ser pianista em Viena? Imagine… Mas o que me chama a atenção é que, além da crueldade de separar duas irmãs que se amavam, houve a crueldade de separá-las de si. Do que elas poderiam ser. Do que elas poderiam ter construído, do que elas poderiam ter realizado.

Ao invés de viver, cada uma delas sobreviveu. Seus sonhos foram mutilados, como o seio da mãe. É uma triste história, ver que duas pessoas poderiam ter sido, feito, conquistado tanto, mas não puderam, porque precisavam pagar por um crime: nascer mulher. Não por acaso, quando alguém pergunta para Guida: “O que é seu bebê?” e ela responde: “menino”, a resposta é:

“sorte dele”…

 

Raquel Andrade

Raquel Andrade é graduada em Letras (UFMG) , tendo cursado um semestre na Wayne State University (Michigan, Estados Unidos), onde estudou literatura e cinema. Mestre em Literatura (UFOP), dissertou sobre o livro “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë, e três adaptações deste romance. Já lecionou idiomas em várias escolas e atualmente é autônoma, ainda trabalhando com ensino de línguas e tradução. Traduziu um conto de Hemingway e já realizou tradução consecutiva, entre outros trabalhos. Apaixonada por livros, séries, filmes e tudo que envolva a sétima arte.

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