Estou me guardando para quando o Carnaval chegar

Estou me guardando para quando o Carnaval chegar
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Documentário de Marcelo Gomes, de 2019.

 

A partir de agora, haverá spoilers…

 

O documentário de Marcelo Gomes mostra a realidade de Toritama, uma pequena cidade no interior de Pernambuco, mas poderia ser em várias outras cidades…

Basicamente, Toritama é uma cidade que gira ao redor da produção de jeans. Praticamente todos os habitantes, com raras exceções, trabalham com corte, costura, coloração, venda, design… Para todo lado que se olhe, enxerga-se alguém fazendo alguma coisa relativa à produção de jeans. Mas outro aspecto chama atenção: as pessoas trabalham praticamente todos os dias da semana. Mesmo aos domingos, o jeans está presente: é dia de feira e eles lutam para conseguir vender o máximo possível. Moradores relatam que apenas param duas vezes: no Carnaval e no fim do ano.

O documentário tem tudo para ser pesado. Mas não é. As pessoas da cidade são entrevistadas e, apesar dessa realidade insana, elas são extremamente leves e, por que não dizer, felizes. Tem-se a impressão de que vivem para trabalhar. Eles acordam, trabalham, fazem pausa para o almoço, trabalham de novo. Todos os dias. E algumas atividades são extremamente árduas e repetitivas. Algumas mulheres vão a casa fazer o almoço, “a janta”, e voltam para o trabalho, até as 22:00… Ainda assim, elas não relatam isso com pesar, nem com tristeza. O sentimento geral parece ser o de gratidão, por terem trabalho. E alguns dizem ser até mesmo vantajoso. Então fica a pergunta: o que seria pior que esse ritmo completamente desumano, que chega a lembrar as condições da época da Revolução Industrial?

A resposta vem na figura de Leo. Ele se torna quase que o protagonista do documentário. E merece o posto, por ser uma pessoa extremamente cativante. A primeira vez que o vemos, ele está dormindo. Dorme um sono tão profundo que nem percebe mosquitos pousando em suas pernas. Mas não pense que ele é preguiçoso: não por acaso ele conta que seu nome é “trabalho” e seu sobrenome é “hora extra”. Esse risonho e falante habitante de Toritama realmente parece viver para trabalhar (assim como quase todos os seus conterrâneos). Quando não está tingindo jeans, está trabalhando na construção de uma nova casa para um amigo, que abrigará (que surpresa) outro centro de produção de jeans. Quando Leo conta como era sua vida antes do jeans, vamos compreendendo a razão da gratidão das pessoas por trabalharem nessa atividade: antes, Leo (e provavelmente muitos outros) trabalhou cortando cana e ganhando 12 reais por semana (!!!!!), “torando” pé de côco, cavando “toco”… As opções parecem conseguir ser ainda mais exaustivas e mal remuneradas do que o que eles têm agora. Fica mais fácil, então, compreender como podem viver como vivem e, ainda assim, estarem satisfeitos.

De repente, compreendemos o nome do documentário. Dias antes do Carnaval, começa uma comoção na cidade, que beira o desespero: quase todos querem viajar para a praia. Para isso, vendem suas televisões, geladeiras, o que conseguirem, por valores como 200 ou 300 reais. No auge da ansiedade, começam a baixar o preço. A geladeira, inicialmente oferecida a 200 reais, cai para 150. E o depois? Depois compram de novo, talvez da mesma pessoa para quem venderam.  Essas pessoas que não param jamais de trabalhar precisam, urgentemente, sair da cidade, ir à praia, viver o Carnaval.

Mas “todo Carnaval tem seu fim”, como diz a canção. Passados os dias do feriado, as pessoas voltam à realidade de trabalhar, trabalhar, trabalhar. A chuva que cai, religiosamente, após o feriado, combina com o silêncio e a melancolia que tomam a cidade. É como se, por um breve momento, os moradores da cidade se dessem conta de que não estão vivendo, mas apenas existindo. Após o frenesi, a realidade parece contrastar com os poucos dias em que experimentaram uma forma diferente de viver. Toritama,ficamos sabendo ao fim do documentário, significa “terra da felicidade”, ou algo assim. Parece irônico, considerando a vida que eles levam. E ainda assim, esta forma de vida parece ser melhor do que outras opções já experimentadas por muitos deles…

Será que Toritama não está, na verdade, em outros estados? Será que não estamos todos assim, neste ritmo insano, apenas existindo, ao invés de viver? Será que não estamos todos vivendo em função de esperar o Carnaval, ou outro evento qualquer?

 

 

Raquel Andrade

Raquel Andrade é graduada em Letras (UFMG) , tendo cursado um semestre na Wayne State University (Michigan, Estados Unidos), onde estudou literatura e cinema. Mestre em Literatura (UFOP), dissertou sobre o livro “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë, e três adaptações deste romance. Já lecionou idiomas em várias escolas e atualmente é autônoma, ainda trabalhando com ensino de línguas e tradução. Traduziu um conto de Hemingway e já realizou tradução consecutiva, entre outros trabalhos. Apaixonada por livros, séries, filmes e tudo que envolva a sétima arte.

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