Arlette ou Fernanda: como se faz uma artista?
Em 2017 eu tive o prazer de acompanhar a entrevista da consagrada atriz Fernanda Montenegro para a ComicCon Experience, onde foi homenageada. Naquele contexto, ela mostrou o quão preocupada estava em conseguir conversar com os ditos “jovens”, pois acreditava que eles, talvez, não estivessem dispostos a ouvir “uma senhora de quase 90 anos de idade”.
Ledo engano. A presença da ilustre artista comoveu a multidão de pessoas, inúmeros acompanharam a entrevista, emocionados. E, agora, com esse livro, milhares poderão se aproximar ainda mais para poder, digamos, ouvi-la.
…ação!
“Prólogo, ato, epílogo” foi lançado esse ano pela Companhia das Letras. O livro, como o título antevem, é dividido em 3 partes, sendo respectivamente: prólogo, ato e epílogo. Foi escrito pela própria atriz, a partir da transcrição de várias entrevistas feitas com ela, por Marta Góes.
No prólogo, conhecemos a história dos antecedentes familiares de Arlette Pinheiro da Silva Torres: família italiana, de origem pobre, fugindo das dificuldades enfrentadas na Itália recém unificada, enganada com a promessa de riqueza no Brasil. Chegaram em Minas, se recusaram a ser explorados nos cafezais e fugiram. Moraram em Passagem de Mariana, São Paulo e, finalmente, no Rio de Janeiro, onde nasceu Arlette, em 16 de outubro de 1929.
Quando começou a trabalhar no rádio para ter seu próprio dinheiro, Arlette não tinha grandes pretensões quanto à uma vida artística, foi professora de português para estrangeiros, atriz de radionovela, lia incansavelmente as obras literárias clássicas que devia narrar, conheceu inúmeros artistas. Estreou peças de teatro e apresentações artísticas na TV até, enfim, se perceber como atriz. A partir de então, deixa de ser Arlette e torna-se Fernanda Montenegro. Fascinante como vida e arte se confundem. Quando Fernanda deixa de ser Fernanda para ser Arlette ou vice-versa? Não sabemos. São a mesma pessoa, vivendo para o teatro, para a arte, criando os filhos nas coxias, amigos artistas, o marido ator e diretor.
aos 90…
O epílogo, curtíssimo, assemelha-se a uma despedida, talvez de todos aqueles, incluindo o marido e amigos queridíssimos, que o tempo levou. Aos 90 anos, todavia, Fernanda já antevê a própria despedida, não dos palcos, pois “ainda dou conta do meu ofício”, mas “o que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”.
Aprendizado
Se Montenegro estava tão preocupada se seria, ainda, ouvida, é preciso deixar claro que sim. Há muito o que se aprender com a artista, com a mulher, com a mãe, tão maravilhosamente subversiva, tão firme na crença da importância da arte.
Recentemente, Fernanda adaptou Simone de Beauvoir e levou-a às periferias do Rio de Janeiro. A princípio, lhe disseram que seu projeto não seria aprovado, pois era uma pretensão muito descabida achar que mulheres das periferias sequer se interessariam por filosofia. Por fim, seu espetáculo foi sucesso de público e Fernanda conta, empolgada, das histórias que ouviu após o espetáculo, das interlocutoras que se identificaram com a filósofa ou rechaçaram seu comportamento. A leitura que podemos fazer desse episódio? A arte é fundamental a todos e todos podem e devem ter acesso a ela!
Dedicatória
O livro é dedicado aos netos, mas como fã e leitora, me sinto abrangida. O que Fernanda Montenegro representa ao nosso país é uma dedicatória por si mesma. A autobiografia poderia ter sido focada na autora e já seria um presentão, mas é muito mais do que isso; é também uma história do teatro brasileiro, do relacionamento da política e da arte, nem sempre feliz, é uma história do próprio Brasil.
Estamos te ouvindo, Fernanda. Muito obrigada pelo espetáculo! [aplausos]