O Conto da Aia

O Conto da Aia
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O dia internacional das mulheres é comemorado todo ano no dia 08 de março. Tendo em vista que esta data foi ontem, pensei que minha resenha desta semana deveria ser, de alguma forma, uma homenagem às mulheres. Foi então que optei por escrever sobre O Conto da Aia (The Handmaid´s Tale). É impossível pensar nas questões do feminino (e feministas) sem transitar por este livro e/ou pela série: os dois mostram o que pode acontecer em uma sociedade dominada por um grupo intolerante, autoritário e misógino.

Aliás, se você já leu o livro ou gosta da série, sugiro que leia a resenha feita por Aline Machado sobre o livro The Testaments, aqui no Vida Modo de Usar. Em The Testaments, Margaret Atwood traz a continuação de The Handmaid´s Tale.

 

O Conto da Aia, de Margaret Atwood, foi publicado em 1985. Uma distopia que traz a narrativa, em primeira pessoa, de uma personagem cujo nome nunca é dito. Apenas sabemos sobre o que ela nos conta, sobre o que acontece com ela, sobre o que ela pensa e sente. Por esse motivo o livro é claustrofóbico (se é que se pode descrever um livro com essa palavra). Assim como a personagem está aprisionada, estamos também nós, leitores, em sua mente. O romance de Atwood se passa em um futuro sem uma data específica. Sabemos, através da narradora e protagonista, que seu país passou por uma guerra e a sociedade foi modificada drasticamente, apesar de ainda existir alguns focos de resistência. Além disso, por causa de mudanças no ambiente, os alimentos estão escassos e o pior: existe uma crise de fertilidade. As pessoas não estão conseguindo gerar filhos ou, quando conseguem, há grandes chances de que a gravidez não prossiga. O grupo no poder decide, então, resolver essa questão. Mas para tal, a solução é raptar as poucas mulheres férteis e estuprá-las, todo mês, até que gerem crianças. É claro que as coisas não são ditas dessa forma. É preciso dourar a pílula, usar eufemismos. Mas de fato é o que acontece: rapto e estupros em massa.

Sobre a série: ela é mais dinâmica do que o livro, pois não se passa apenas dentro da mente da protagonista (que, agora, recebe um nome: June). Vemos também outros personagens, suas vidas prévias (antes da República de Gilead ser instaurada) e o que acontece com eles após essa nova estruturação da sociedade.

 

A partir de agora, haverá spoilers…

 

A série, lançada em 2017, já possui 3 temporadas e a quarta já está sendo filmada, para alegria dos fãs, que esperam, avidamente, que a República de Gilead seja derrubada e que os personagens retomem suas vidas normais e sua liberdade.

 

O grupo que toma o poder instaura uma ditadura política e religiosa: apenas uma religião é permitida em Gilead. As mulheres são divididas e, inclusive, são obrigadas a usar roupas com cores determinadas que atestam qual é sua “função” na sociedade. De azul, cor da pureza, estão as esposas e de vermelho, cor do pecado, estão as aias. Utilizando-se da Bíblia para justificar as atrocidades, os comandantes lêem o trecho no qual Raquel, até então estéril, entrega a Jacó sua criada, para que ele a fecunde, dando, assim, um filho para eles. Após ler o texto bíblico, o comandante estupra a aia, sob o olhar da esposa, que o auxilia, segurando os braços da moça. O evento recebe o pomposo nome de “cerimônia” e é feito seguindo todo um protocolo, uma vez por mês, quando se acredita ser o dia mais fértil dentro de um calendário meticulosamente seguido. Uma vez grávida, a aia dará o filho para o casal. Se não engravidar nunca, após passar por três casas diferentes, ela é mandada para as colônias, onde a morte é certa.

As mulheres são retiradas de suas vidas anteriores. Casamentos são desfeitos, seus filhos são dados a casais que formam a elite dessa nova sociedade, suas profissões são vetadas. Agora há médicas, advogadas, professoras, etc., servindo como aias ou Marthas (nome dado a todas que trabalhem como cozinheiras). As esposas não podem mais ter profissão alguma. Aliás, qualquer mulher que for encontrada lendo ou escrevendo perderá um dedo. E perdas é o que mais se vê em Gilead: de dedo, de olhos, de clitóris. Sim, até mesmo de clitóris. Além das mulheres, os homossexuais são também perseguidos, sendo chamados de  “traidores de gênero” e podendo ser mortos por sua sexualidade. Preciosa demais para ser morta, por ser fértil, uma aia é poupada da forca, mas tem seu corpo mutilado. Ela é lésbica e teve um relacionamento com uma Martha. Por essa razão, retiram seu clitóris para, assim, “acabar com sua tentação”, pois se não há possibilidade de satisfação, não há risco de que ela caia em “pecado”. As mulheres, em Gilead, não podem ter vontade, desejo, profissão, nada. Nem mesmo nomes: estes são “esquecidos”, proibidos. A cada estadia em uma casa elas recebem nomes como Offred (de Fred), Ofwaren (de Waren), de acordo com o nome do comandante a quem servem naquele momento.

A série mostra toda a hipocrisia existente em uma sociedade que prega os bons costumes, a rigidez, o sexo apenas para procriação. O que se vê é que os comandantes têm uma vida paralela. Eles visitam a Casa de Jezebel, que nada mais é que um bordel. Lá estão mulheres que, por motivos variados, acabaram optando por viver como prostitutas. Não porque essa fosse sua vontade, mas porque a outra opção, muitas vezes, seria serem mandadas para as colônias que, como eu já disse, significam a morte certa. Portanto, enquanto as esposas ficam em casa, tricotando ou algo do tipo, os maridos podem usufruir daquilo que, oficialmente, condenam. 

Essa estrutura mostra que a questão da fertilidade nada mais é do que uma desculpa. Na verdade, quem toma o poder queria uma sociedade onde homens imperam, jamais são questionados e mulheres são subjugadas. E me pergunto: seria esse um desejo presente em muitos homens fora da ficção? Ao ver o crescimento do número de mulheres disputando com eles cargos, funções… Ao ver que uma nova sociedade vem se desenhando, na qual mulheres têm voz, têm poder… Não seria o desejo secreto de muitos “recolocar” as mulheres nos locais onde eram, antigamente, colocadas? Todo movimento tem uma reação e a reação ao feminismo parece ser, até entre algumas mulheres, uma espécie de saudosismo de uma época na qual homens e mulheres tinham suas funções muito definidas, delimitadas, e as fronteiras raramente eram cruzadas…

Em um momento, o comandante Waterford diz a June: “Queríamos fazer um mundo melhor”. Ao ser indagado por ela, que chocada diz: “melhor???”, Waterford responde: “melhor nunca é melhor para todos”… Nessa sociedade de Gilead, certamente não está melhor para as mulheres…

Os fãs da série esperam que esse sofrimento chegue ao fim: que essa República de Gilead seja desfeita, que os personagens recuperem sua liberdade, seus nomes, suas vidas. O que eu espero, e a data de ontem me fez pensar mais a respeito, é que algo assim nunca saia da ficção. Que essa distopia continue sendo exatamente uma distopia. Mas algo que June diz, ainda na primeira temporada, me deixa amedrontada: ela diz que nada acontece de um dia para outro. A série mostra exatamente como essa mudança vai ocorrendo gradativamente, com perdas de direito aqui e ali… Com figuras intolerantes e misóginas ganhando voz…Ganhando força…

Atwood já afirmou que nada do que escreveu é completamente inédito na História do mundo. Tudo, por mais chocante que seja, já aconteceu de alguma forma, em algum lugar. Será então tão impossível assim que essa ficção se torne real?

 

Raquel Andrade

Raquel Andrade é graduada em Letras (UFMG) , tendo cursado um semestre na Wayne State University (Michigan, Estados Unidos), onde estudou literatura e cinema. Mestre em Literatura (UFOP), dissertou sobre o livro “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë, e três adaptações deste romance. Já lecionou idiomas em várias escolas e atualmente é autônoma, ainda trabalhando com ensino de línguas e tradução. Traduziu um conto de Hemingway e já realizou tradução consecutiva, entre outros trabalhos. Apaixonada por livros, séries, filmes e tudo que envolva a sétima arte.

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