Simone de Beauvoir: uma vida por Kate Kirkpatrick
“Emancipar a mulher é recusar-se a encerrá-la nas relações que ela mantém com o homem, mas não as negar a ela”.
Essa é uma frase retirada de O Segundo Sexo pela biógrafa de Simone de Beauvoir, Kate Kirkpatrick, e usada como epígrafe nessa nova biografia, cujo intuito é justamente resgatar a filósofa francesa em sua existência, independente dos homens de sua vida, principalmente Jean-Paul Sartre, mas sem negá-los.
“Não importa quão bem documentada seja uma vida, a documentação de uma vida não é a própria vida”
Não posso dizer que conheço a obra de Beauvoir – assim como muitos sempre achei que soubesse o suficiente, o que não passava de senso comum. Eu sabia que ela foi uma filósofa francesa; que teve um relacionamento aberto com Jean-Paul Sartre, outro filósofo francês; a feminista que escreveu a famigerada frase “Não nascemos mulher, nos tornamos mulher” ou qualquer outra variação/tradução dela.
Pois bem, eu não conhecia Beauvoir. Não que ter lido sua biografia me faça conhecê-la perfeitamente bem. Não acredito nisso. Uma biografia é sempre um recorte que depende diretamente de quem está escrevendo e quais são as visões de mundo e objetivos dessa pessoa.
Para Kate Kirkpatrick, o objetivo é desmitificar várias das conclusões precipitadas que foram feitas a respeito de Beauvoir ao longo do tempo – inclusive, por seus biógrafos – e procurar as razões dos recortes que a própria filósofa fez em suas memórias.
“Nenhum ser humano deseja a mesma coisa durante toda a vida”
É muito interessante perceber que uma das críticas mais direcionadas à Beauvoir foi uma possível incoerência entre suas memórias e seus escritos filosóficos.
A beleza da nossa construção cultural é que, ao mesmo tempo em que somos frutos do meio, podemos agir para desconstruir ideias e preconceitos e fazer parte da reconstrução de um mundo que pensamos ser melhor e mais justo.
Beauvoir nunca deixará de ser uma mulher do seu tempo e, como tal precisou, primeiro, aceitar os seus erros, se desconstruir para, então, compreender a importância de uma militância feminista. O que, de modo algum, significa que ela se tornou a fada sensata sem defeitos que virou ideal de vida no século 21.
Nenhuma mulher nasce feminista, mas pode se tornar uma
Esse meu primeiro encontro – mesmo que intermediado – com Beauvoir me causou uma impressão muito positiva e ler algumas das obras mais icônicas da autora já estão na minha lista. O que me chamou mais a atenção, no entanto, foram as pré-concepções que eu tinha e puder rever. Foram elas: o papel de Jean-Paul Sartre da vida da escritora, a postura feminista e revolucionária de Beauvoir, a produção filosófica e literária.
O que chegou a mim a respeito de Simone de Beauvoir é melhor do que pode ser encontrado nas redes sociais, mas ainda assim esbarra em muita falta de conhecimento. Eu não sabia que, para muitos, ela, durante muito tempo, não foi considerada filósofa, ao contrário, eu não sabia de suas obras literárias, nas quais, ao que parece, ela tentou mostrar as suas ideias mais do que só produzir tratados teóricos, nem sempre acessíveis ao grande público – uma preocupação não demonstrada desde os primórdios de sua produção.
Beauvoir não nasceu feminista, mas tornou-se uma. Apesar de seus privilégios, a expectativa familiar era de um casamento promissor e crianças. Ao contrário, nunca se casou, nunca teve filhos, morou com apenas um de seus relacionamentos mais sérios (o diretor do documentário Shoah, Claude Lanzmann, a quem incentivou com seu projeto, inclusive, financeiramente). E, apesar do pacto com Jean-Paul Sartre nunca ser esquecido, foram amigos e parceiros intelectuais mais do que qualquer outra coisa.
Se hoje a liberdade sexual de uma mulher ainda é vista como um grande tabu, em diferentes grupos sociais, é possível, então, vislumbrar, um pouco do preconceito com que as ideias de Beauvoir foram recebidas. Num contexto em que o ideal de mulher era calada, em casa, uma que se presta não só a falar como a dar voz a muitas outras causou, á época, no mínimo, escárnio, por sua ousadia.
Na incapacidade de muitos de compreendê-la, Beauvoir foi, muitas vezes, simplificada – até mesmo desfigurada – ao ser transformada na seguidora fiel de Sartre. Ao contrário, eram iguais e se tratavam como tais, o que pode ser percebido nas cartas que trocavam. Além disso, eles defendiam ideias bastante dissonantes, apesar de lerem e criticarem os trabalhos um do outro em primeira mão.
Beauvoir – em seus diários isso fica evidente – cresceu incomodada com as limitações impostas às mulheres, historicamente. O feminismo, em sua época, já soava ultrapassado, já que as mulheres tinham conseguido o direito ao voto, como se isso apenas bastasse enquanto parâmetro de igualdade. Foi preciso escrever e publicar muito, se aproximar das histórias de mulheres “reais” para que a própria filósofa se entendesse como feminista. No entanto, a genialidade atribuída aos homens quando tratam de ideias inovadoras não lhe foi dada facilmente. O que só mostra que o reconhecimento de uma mulher, por melhor que ela seja, precisa de um esforço monumental e inúmeras e infundadas críticas para alcançar algum destaque. E, mesmo assim, chegar a pessoas, como eu, que se entendem como estudadas e em processo de desconstrução, ainda de formas tão distorcidas.