Diante da Lei – Franz Kafka
Franz Kafka é um autor conhecido, principalmente, pela obra Metamorfose, em que o protagonista, Gregor Samsa, acorda de sonhos intranquilos se transformando em um enorme inseto, ou ainda por O Processo, em que o personagem principal é acusado, condenado e perseguido por um crime cujo teor ele mesmo desconhece. Ao adentrarmos no mundo de Kafka, percebemos uma constante sensação de desorientação do personagem principal que, em alguns casos, é conhecido apenas pela abreviação expressa pela letra K. Seria essa abreviação uma forma de generalizá-lo e, dessa forma, aproximá-lo de cada um de nós, para que percorramos a sua trajetória? Sem dúvida, essa é uma hipótese de grande probabilidade, já que essa sensação kafkiana atinge todos os leitores que se debruçam sobre sua obra. Importante chamar atenção para essa expressão, kafkiana, usada de modo recorrente na Literatura e até mesmo fora dela, para descrever situações em que o sujeito se encontra em uma trajetória nebulosa, confusa e desorientada.
O conto Diante da lei faz parte, originalmente, da obra O Processo, mas é tão marcante que passou a ser lida como uma história independente. Nela, podemos ver o guardião da Lei, quando então presenciamos a chegada de um homem do campo, que tenta conseguir a sua entrada. Diante de uma resposta negativa, o homem questiona se e quando poderia entrar, e tem a resposta de que, eventualmente, sem se saber como ou quando, essa entrada poderia acontecer.
A partir de então, o homem do campo inicia um processo longo de tentativa de convencimento do guardião da porta, que, ao contrário, rebate cada um dos argumentos do camponês. Depois de um tempo, o guardião dá ao homem uma banqueta, o que já sinaliza o tempo de espera destinado a ele.
Lê-se:
A partir daí, o homem vai perdendo o vigor, sua força começa a abandoná-lo, e ele mal percebe que está passando a sua vida toda esperando pela abertura daquela porta. (…)saber ainda?”, pergunta o guarda. – ”És insaciável”. – ”Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. – ”Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: – ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.
Nesse momento, então, nada mais faz sentido: o leitor se depara com um homem humilde, que busca a sua entrada na Lei; diante dela é feito esperar por toda a sua vida e, quando já no último de seus momentos, percebe finalmente que aquela porta, que sempre estivera fechada diante de seus olhos, cuja entrada lhe havia sido negada repetidamente, era destinada tão somente a ele. E, no entanto, ainda assim, encontra a morte sem ter tido a chance de vislumbrar o que havia logo na entrada da porta.
Kafka era um denunciador da burocracia; e o que melhor para representá-la do que um sofrimento cíclico, inexplicado e repetitivo? Ao fazermos uso do termo burocracia, vale ressaltar que não se busca uma análise simplista do que isso possa significar. Como lê-se no artigo Franz Kafka e a burocracia weberiana,
Em algumas obras de Kafka tudo passa pela burocracia. Em O castelo (1922/26), o protagonista tem sua vida dependendo dos trâmites da burocracia do Castelo e de seus funcionários. Em O processo (1914/1925), como o próprio nome sugere, a vida do personagem principal prende-se a um processo e termina por meio deste. Walter Benjamin entendia que essa estrutura imponente poderia significar o poder do pai, a autoridade repressora e castigadora que na, visão da criança, o ser reprimido, parece estar em todos os lugares, vendo tudo e pronta para reprimir. (BENJAMIN, 2011, p. 140)
Assim, percebe-se que o ser kafkiano é reflexivo, por vezes confuso, submetidos a vozes, regras, normas e leis que não são claras, ao contrário, são desnorteadoras. Sabe-se que a obra literária não se fecha em uma explicação ou em conceitos estanques, mas, como nos diz Umberto Eco, em Kakfa o “agravante” é esta ser inconclusa e fragmentada. Isso só torna a obra de Franz Kafka mais especial: é construída e reconstruída a cada leitura, a cada pensamento e relato que gera.
Bibliografia:
BENJAMIN, Walter. Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In: ______. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2011.
SOUSA, Alexandre Ricardo Lobo de. FRANZ KAFKA E A BUROCRACIA WEBERIANA. In: REEL – Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, s. 2, ano 9, n. 12, 2013.